PLURIVERSOS

Revista Independente de Literatura

KAFKA PERANTE O FOGO - Vilto Reis




KAFKA PERANTE O FOGO
Vilto Reis
Colaborador

Outra vez, confere se o forno está aceso. Vai até a mesa e reclina-se sobre o prato de tcholnt. Levanta a sobrancelha direita após fungar. A campainha da pensão da sra. Böhm toca, e ele estremece suas orelhas pontudas. Se segura na cadeira, com sinais de tontura. Parece hesitar. O corpo, comprido e seco, não se meche até que a campainha tintile de novo.
Uma perna após a outra, vai até a porta e abre.
“Por que demorou tanto?”, ela diz.
“Preparando… a comida.”
“E por que não me escreveu?, pergunta, já no interior do apartamento.
“Bem, é que –”
“Nem um bilhetinho. E esse cheiro? Por isso que avisei e vim.”
“Mas depois de –”
“Depois disso aqui?”, a mulher sacode alguns papeis amarelos, rabiscados.
“Felice, é que –”
“Nada, nada. Não me interessa.”
A voz da mulher ressoa, “absurdo, absurdo, ouça isso: ‘existem para mim certas dificuldades das quais tens uma vaga noção, mas que não levas suficientemente a sério, e não o farias mesmo se estivesses totalmente a par delas’, e tem mais, ‘há cerca de dez anos venho sentindo cada vez mais que não estou em perfeita saúde’.”
“É verdade.”
“Para! Para, ouviu bem?”, a mulher diz, com o dedo em riste.
Ele vai retrocedendo pela sala, no mesmo ritmo em que ela dá passos em sua direção. Tropica uma perna na outra, por pouco não cai. As orelhas tremulam. O queixo fino parece ainda mais proeminente. Engole em seco quando encosta no sofá. Suas pernas se dobram e ele cai sentado. Felice avança em direção dele.
“Sabe o que vim fazer aqui hoje?”.
“...”
“Vim dizer que te amo”, diz e dá um beijo.
O paletó dele, um pouco amassado; a gola da camisa, arrebitada. A mulher estaria da mesma forma que quando chegou, se não fossem alguns fios de cabelo esvoaçando sobre o arco. Entre os dois, restos de tcholnt, ainda que a carne e as batatas foram devoradas, restando o feijão branco; também sobras de gelfite fish, mas muito mais de matzoh, o pão acabou sobrando no jantar; e um pote de harissa, em que se reflete a luz do teto sobre o molho de pimenta malagueta.
A conversa sobre a obra começa quando eles passam a tirar a mesa.
“Você tá acabando?”, a mulher pergunta.
“Aquela obra?”, ele devolve, deixando um garfo cair.
“Aquela.”
“Já te falei que O Labirinto é grande.”
“Seiscentas páginas, algo assim, você comentou.”
Ele solta uma risada que desafina. “Seiscentas? Passei de mil!”
“Maior que O Castelo!?”.
“Não ouse pronunciar esse título novamente.”
“Ui, sem me assustar.”
“Será minha obra-prima.”
“De que adianta?”
“O que quer dizer?”
“Você nunca publica”, ela diz e antes de ir para a cozinha, segurando alguns pratos, acrescenta, “seja corajoso, meu bem”.
Sozinho no cômodo, contorna a mesa três vezes. Levanta a cabeça, olha para o lustre, depois coloca a ponta do dedo no pote de harissa. Em seguida, leva-o à boca.  Estabanado, dispara em direção ao banheiro, batendo contra as paredes, quase tropeçando.
A mulher retorna da cozinha e parece procurá-lo. Apoia as costas das mãos na cintura e bate o pé direito no chão.
“Onde você se –”, a mulher tenta questionar.
“Me faz bem, Felice. Você me faz bem”, ele diz, ao entrar na sala.
“É mesmo? Então por que não publica aqueles romances? Só lança esses livrinhos de contos, ou aquela novela horrorosa do menino que vira barata...”
“Mas Felice, eu –”
“E essa história de que você disse pro Max Brod pra queimar teus rabiscos quando morrer? Tava bêbado?”
“Eu, eu –”
“Você nada”, a mulher diz e o toma pela mão, arrastando-o pelo corredor, abrindo com a outra mão uma porta e empurrando-o com violência para o escuro. Ouve-se o som de roupa se rasgando, e mais outra, sapatos caindo sobre o assoalho, estalos de beijos. Depois alguns gemidos, sussurros, que parecem implorar por algo que não se pode definir ao certo.
Vozes voltam a se fazer audíveis.
“Felice, eu não –”
“Não quer ser feliz?”
“Não consigo, não –”
“Vamos ficar nus discutindo sobre isso? Nus, Kafka?”
“Tem O Labirinto.
“E por que não pode escrever e viver comigo?”
“Na verdade…”
“Sim?”
“Ele tá escrito.”
“Como é que é?”
“Mas não confio em Max.”
“E o que tem a ver? Não disse pra ele queimar apenas suas obras inacabadas?”
“Exatamente, a obra perfeita é aquela incompleta – quanto mais faltante, melhor –, jamais será acabada”.
“Nunca vou entender. O que você acha que Brod vai fazer se pegar O Labirinto e ver que é genial? Tenho um palpite.”
“Já sei.”
“Meu palpite?”
“Não, o que Brod vai fazer.”
“Confia mais nele do que em mim...”.
“Tomei as devidas precauções”.
“Sobre O Labirinto?”
“Após concluí-lo, ontem à noite, acendi o forno e joguei as mais de mil páginas. Fiquei perante o fogo, apenas vendo.”
“Queimou!? Tá maluco?”
“Não vou viver com você, Felice, pois já posso morrer.”
“Totalmente maluco.”
“Posso morrer. Vi o trabalho de uma vida sendo queimado. É mais do que mereço. Isso sim é uma obra-prima.”

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