O HERÓI INVOLUNTÁRIO DE DIAS GOMES
Luigi Ricciardi
Recentemente, Saramandaia foi
exibida na Rede Globo em sua nova versão. Porém, apesar de algumas mudanças,
alguns elementos principais foram mantidos: a exploração vocabular por meio de
neologismos e o diálogo com o universo fantástico. Algumas pessoas torceram o
nariz justamente por esse estranhamento em relação à linguagem. Não que eu
goste da Rede Globo, mas defendo aqui o autor. É justamente essa variação linguística
que segmenta o estilo de Dias Gomes. Quem criticou a novela por essa razão,
deve muito provavelmente criticar Guimarães Rosa e José Saramago pelos mesmo
motivos.
Porém, não foi pra falar exatamente
da linguagem nem das novelas globais que me propus a escrever esse artigo. Dias
Gomes fez muito mais do que folhetins para os “plim plins” das nove da noite. Fez
teatro e foi elogiado pelos grandes críticos nos anos 1950 e 1960. Como já
disse tem uma linguagem carregada de neologismos, tendo como base algumas
linguagens regionalistas. De sua vasta obra, três tomaram grandes proporções no
cenário brasileiro e mundial, seja nos palcos, nas telas pequenas ou nos
grandes écrans do cinema: O Pagador de
Promessas, Odorico, o Bem Amado e
O Berço do Herói. Todas elas têm um
ponto em comum, alguém que se torna um herói sem querer assumir o papel.
O primeiro exemplo deles, talvez o
mais famoso é d’O Pagador de Promessas
(sua versão cinematográfica ganhou a Palma de Ouro em Cannes). A peça conta a
história de Zé do Burro, que carrega uma cruz do interior da Bahia até à uma
igreja de Salvador para pagar uma promessa. Chegando lá, é proibido de
cumpri-la pelo padre quando esse descobre que a promessa foi feita em um
terreiro de macumba para salvar a vida de um burro, melhor amigo de Zé (Daí a
alcunha). Zé decide fazer greve de fome e não sair da escadaria da igreja até
que os sacerdotes o permitam entrar na igreja para pagar a promessa. De
repente, toda a cidade sabe de sua história e o jornal da cidade quer
transformá-lo em um herói. Politicamente tentam forçam a aceitação de sua
entrada na igreja e depois leva-lo em carro aberto para que o povo o saúde. Zé
rejeita veementemente a proposta. Sem êxito, de qualquer forma ele acaba se
tornando um herói para o povo, quando é morto em uma confusão no final da peça.
Zé é uma pessoa do povo, humilde e
muito ingênuo. Retoma a figura do herói clássico, que vai até o fim em busca de
seus objetivos não deixando de lado em nenhum momento suas crenças e seus
valores. É um herói que não se corrompe. Mas que corrobora com o que se pode
chamar de “herói involuntário” da obra de Dias Gomes.
Outro exemplo clássico é de O Berço do Herói, que ficou conhecida
nacional e internacionalmente na sua adaptação para as telenovelas com o nome
de Roque Santeiro. Cabo Jorge é mito
em sua cidade natal, pois supostamente teria morrido em uma guerra. A cidade
toda vive do turismo proporcionado pelo mito de sua morte no campo de batalha. Porém,
um dia cabo Jorge retorna a sua cidade. Os governantes, quando descobrem que
ele está vivo e voltou, querem agora esconder a verdade da população, pois a
revelação faria a economia da cidade fracassar. Então, morrer é certo e viver é
errado, essa é a lógica do capital.
O Berço do Herói trabalha com a
necessidade de criar heróis nacionais e torná-los mitos para que os poderosos
possam se beneficiar à partir da crença popular. A ideia está sintetizada na
frase que aparece na obra: "Não são os heróis que fazem a História é a
História que faz os heróis". Assim, Cabo Jorge abre um diálogo com Zé do
Burro quando os dois tornam-se heróis involuntariamente e tem que pagar com a
vida para que outros interesses sejam assegurados.
O terceiro exemplo é talvez a mais
caricaturada das histórias, Odorico, o
Bem Amado, famosa na sua versão em telenovela O Bem Amado. Odorico se lança candidato a prefeito da cidade de
Sucupira com o argumento de construir um cemitério para a população (até então
os mortos da cidade deveriam ser enterrados em uma cidade vizinha). Ele acaba
ganhando a eleição. Então prefeito, desvia dinheiro da saúde, da empresa de
água, das contas da prefeitura para construir um cemitério e cumprir sua
promessa. Mas a cidade está à beira de um caos financeiro. E pior, ninguém mais
morre na cidade. Chegaram a importar um doente para que ele morresse em
Sucupira, mas o doente se reestabelece.
Odorico ainda tenta encomendar a
morte de seu rival político, mas o tiro sai pela culatra e a população toda
fica sabendo de seu jogo sujo. Em uma última tentativa desesperada de
reestabelecer sua imagem perante à sociedade de Sucupira, decide simular um
atentado à sua pessoa, destruindo seu gabinete e dando um tiro no pé, que
ricocheteia e vai parar diretamente no seu coração, levando à morte. Finalmente
o cemitério é inaugurado, ele é o herói, salva a cidade, inaugura o cemitério.
Ele foi o próprio herói que tanto procurava. Foi também um herói involuntário,
aqui com ares de tragicomédia.
O herói de Dias Gomes parece estar
entre aqueles dois heróis já cristalizados na história da literatura. Nas suas
obras não é exatamente nem o herói clássico revestido com todas as qualidades
de um povo e que luta por ele, nem exatamente o herói do romance moderno que
vive uma vida burguesa, pautada pela sua individualidade sem carregar as
qualidades de uma coletividade, sem pretensões de salvar ninguém. Aqui se vê
alguém que mais parece com o segundo, mas que acaba assumindo involuntariamente
a forma do primeiro.


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