O Lirismo e os Tabus em Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar
Por
Luigi Ricciardi
Em 2010, a revista Bravo
publicou uma lista dos melhores livros da literatura brasileira, e nela o livro
Lavoura Arcaica de Raduan Nassar
alcançou o oitavo lugar à frente de medalhões como A Paixão Segundo GH de Clarice Lispector, Macunaíma de Mário de Andrade, Lira
dos Vinte Anos de Álvares de Azevedo e Vestido
de Noiva de Nelson Rodrigues. Deveras por mérito, o romance é um dos
grandes marcos do romance brasileiro dos idos séculos XX.
Lavoura
Arcaica, de Raduan Nassar, lançado em
1975, é um livro onde a narrativa se deixa seduzir pela poesia lírica. André,
filho pródigo encarnado, descreve seu mundo e sua família com um pincel lírico.
É uma “nova” modalidade de romance chamada de “romance lírico”.
Nesse
romance, há nitidamente elementos fortes dos dois gêneros, épico e lírico. O
espaço do romance é aquele que está na mente da personagem-narrador, porque,
embora tenha respaldo em um espaço objetivo, esse espaço é constituído por
rememorações do narrador-personagem, e, portanto, é um espaço interior. O
espaço descrito por ele pode não corresponder ao verdadeiro espaço no qual ele
teve as experiências. Ele dá espaço às nuanças subjetivas de acordo com a sua
angústia. É ela que provoca a eclosão da subjetividade e da poesia lírica.
Os olhos no teto, a nudez dentro do
quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual,
é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um
áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre objetos
que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo; eu estava deitado no
assoalho do meu quarto, numa velha pensão interiorana, quando meu irmão chegou
pra me levar de volta.
André o filho pródigo de uma família
patriarcal libanesa instalada no interior do Brasil. O pai, com seu discurso de
ordem e respeito às tradições, molda toda a família. André não se contenta com
a vida que tem, quer explorar o mundo, fugir das ordens do pai, fugir de um
mundo que o assola. Ele vai embora. O romance começa quando ele está na cidade,
em um quarto pobre e sujo alugado e pago com dificuldade, quando seu irmão
Pedro, fiel aos planos do pai, vem para lhe buscar e lhe levar de volta, pois a
família já não era a mesma desde sua partida.
O conflito de André não é só com o
discurso do pai e com a fidelidade que o irmão é devoto ao progenitor, mas
também, e, sobretudo consigo mesmo e pela paixão que nutre pela própria irmã,
Ana. Ela é frequentemente descrita como um elemento forte da natureza, muitas
vezes descrita como se fosse algo divino, com pronomes que lhe remetem escritos
em letra maiúscula.
Essa paixão o consome, e André se
crê doente. Aceita o pedido do irmão e volta à casa. Em um dos momentos mais
interessantes do livro, na mesa da cozinha, quando acabara de voltar, há um
debate de ideias entre ele e Iohána, seu pai. Um é a desconstrução do outro.
Saltei num instante para cima da laje
que pesava sobre meu corpo, meus olhos de início foram de espanto, redondos e
parados, olhos de lagarto que abandonando a água imensa tivesse deslizado a
barriga numa rocha firme; fechei minhas pálpebras de couro para proteger-me da
luz que me queimava, e meu verbo foi um princípio de mundo: musgo, charcos e lodo;
e meu primeiro pensamento foi em relação ao espaço, e minha primeira saliva
revestiu-se do emprego do tempo; todo espaço existe para um passeio, passei a
dizer, e a dizer o que nunca havia suspeitado antes, nenhum espaço existe se
não for fecundado.
O romance remete à parábola bíblica
do filho pródigo, que, depois de ter gastado o que tinha, retorna ao lar.
André, no entanto, retorna por não lhe haver mais esperanças, e não porque se
arrependera. Sua volta não é convicta. Há também o tabu do incesto, e um flerte
não só, como já dito, com o romance lírico, mas também com a tragédia grega, na
cena final onde Iohána mata Ana, por dançar sensualmente em uma festa de
família. Não se preocupem, o final é o de menos a beleza da obra supera o fato
de conhecer detalhes de sua narrativa fragmentada. No fundo, o conhecimento
prévio até ajuda na compreensão.
Em 2001, Luiz Fernando Carvalho
adaptou o livro às telas de cinema. Foi muito criticado e justamente por um
motivo diferente dos fãs das obras levadas às telonas: o fato de ser muito fiel
ao livro, dando pouca liberta na transposição. O filme teve Selton Mello no
papel principal, Raul Cortez como Iohána, e Simone Spoladore como Ana.
Ficamos órfãos de escritores como
Nassar, depois da sua decisão de se aposentar da literatura e se dedicar à
fazenda onde mora. Publicou, além de Lavoura
Arcaica, somente mais dois livros, a novela Um Copo de Cólera, e o livro de
contos Menina a Caminho. Ambos muito
bons, mas aquém do seu único romance. O escritor mesmo diz que fez muito mais
para o mundo “criando galinhas do que escrevendo literatura”. Talvez ele seja
um bom criador de aves, mas duvido que seja tão bom quanto é como escritor.
Foi este o instante: ela transpôs a
soleira, me contornando pelo lado como se contornasse um lenho erguido à sua
frente, impassível, seco, altamente inflamável: não me mexi, continuei o
madeiro tenso, sentindo contudo seus passos dementes atrás de mim [...] ela
estava lá, deitada na palha, os braços largados ao longo do corpo, podendo alcançar
o céu pela janela [...] me joguei inteiro numa só flecha, tinha veneno na ponta
dessa haste [...] Teus cabelos, havendo júbilo e louçania nesta expansão; Te
vestirei então de cetim branco com largas palas guarnecidas de galões dourados,
ajustando nos Teus dedos anéis cujas pedras guardam os olhares de todos os
profetas, e braceletes de ferro para Teus punhos e um ramo de oliveira para Tua
nobre fonte. [...] e rasgado o teu ventre de cima até embaixo, haverá uma
intimidade de mãos e vísceras, de sangues e virtudes, visgos e preceitos, de
velas exasperadas carpindo óleos sacros e muitas outras águas, para que Tua
fome obscena seja também revitalizada [...]


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