PLURIVERSOS

Revista Independente de Literatura

EU DESEJAVA SECRETAMENTE GISELLA ANDRADE



EU DESEJAVA SECRETAMENTE GISELLA ANDRADE

Luigi Ricciardi


Êta, vida besta, meu Deus. Não que eu fosse religioso ou crente, é que a expressão já tomou corpo e a gente está acostumado. Uma vez meu amigo ateu disse “Sou ateu, graças a Deus” e não se alarmou. E assim a gente vai usando as expressões, pra dar mais dramaticidade. Repito. Êta, vida besta, meu Deus. E como não haveria de ser? Vai me dizer que tudo isso aqui que te cerca não pertence à mais pura bestiária? Eu fico olhando esse povo em descanso dominical. É engraçado, o povo trabalha seis dias por semana, e quando lhes dão um dia verdadeiramente pra eles, para que eles façam realmente algo interessante pra vida deles, todo mundo resolve descansar, pra ficar bem disposto pra semana que vai começar. Resumindo, todos os dias são do trabalho: seis para estar lá e outro para recuperar as energias pra agüentar os seis outros dias que virão. Aí a gente vai ficando cada vez mais em casa, aí eles lançam tevê não sei quantas polegadas, cabo hdmi, transmissão digital, não sei quantos canais pagos, e tantas outras coisas pra gente se distrair em casa. Então, ao invés de sair e comer com os amigos o povo inventa a comida congelada ou um monte de bibelôs pra gente enfeitar a sala pra ficar bonitinha durante nosso descanso. Dá vontade de explodir tudo isso. Todas essas coisas são bonitas, mas não são necessárias pra viver. A gente no fundo é refém do comércio e do trabalho. Fico me perguntando aonde foi parar a revolução trabalhista. Será que ninguém percebe que a gente não vive, que a gente sequer vegeta? Êta vida besta, meu Deus. Aí a gente morre e vai pra onde? Pra debaixo da terra, é óbvio. E num piscar de olhos a gente desaparece e se dá conta que não fez porra nenhuma. Eu mesmo não fiz porra nenhuma a não ser trabalhar, trabalhar e trabalhar. Eu estava pensando em tudo isso enquanto escrevia um conto besta. Comecei a quebrar tudo em casa porque me deu uma raiva de tudo ser assim. Não agüentava mais dar aula pra filhinho de papai riquinho que tirava uma onda na minha cara. Cansado de no dia do meu descanso ter que corrigir prova. Cansado de ser refém da minha própria escrita. Tive raiva porque nunca me liam, tive raiva de ter que escrever, de ser escravo desse negócio. Tive raiva do mundo. Dei uma de escritor revoltado, o gênio incompreendido das sobras da mesa do romantismo. Coitado do Oswald e do Mário, o romantismo não morreu mesmo depois das cusparadas que eles deram no filho enfermo. Enfermo mais eterno. Achei bonito essa coisa de poeta não correspondido. O poeta que enche a cara e morre pobre. Fui atrás de qualquer coisa que me animasse, mas a cidade onde eu moro não viveu ainda nem a revolução feminista, nem a estudantil, nem a semana de arte moderna. Eu me cansei de escrever, eu me cansei do quarto mal iluminado e mal ventilado. Eu era uma fogueira. Escrevia, escrevia quase sem ponto final. Passei horas assim. Até que não agüentei mais escrever, até porque hoje em dia todo mundo escreve no computador, e porra do Word é um filho da puta de um pudico, fica tentando corrigir cada palavrão que eu escrevo no documento. Desse jeito não pode haver mais conto, mais literatura, vamos todos à igreja, somos do período vitoriano novamente, tranquem os paus e as bucetas com cadeado eterno. Ressuscitem para depois crucificar o Marquês de Sade, aquele filho da puta inveterado. Cansei disso tudo. Cansei de ser sonhador. Os amigos estavam todos dormindo, o mundo estava dormindo e de ponta cabeça. Queria sair do mundo, mas não dava, não conhecia nenhum jeito a não ser morrer, mas eu não queria morrer, ao menos não naquele momento. Girei a cidade toda atrás de alguma coisa. Parei na frente de uma casa noturna da ralé. Três garotas, duas muito feias e uma de pernas bonitas com bastante maquiagem nos olhos. As duas feias eram gêmeas e foram embora. A outra ficou sozinha com uma bebida na mão me encarando. A gente se beijou e estávamos transando no carro quatro minutos e meio depois. Ela dormiu. Eu chorei porque me lembrei de alguém que há muito partira. Eu me lembrei de Gisella Andrade, a coisa mais terna da minha memória. Gisella Andrade era do tipo moderninha, dessas que a gente vê aos montes no nosso tempo antigo-atual. Não falo das que metem dois litros de silicone em cada seio e usam decotes e pequenos shorts pra mostrar a polpa da bunda. Eu sou do tipo sonhador. Com essas daí eu só teria uma trepada e nada mais. Gozaria e não saberia mais o que fazer. Chuparia aqueles bicos negros de tetas de plástico e gozaria num hamburgão laceado. Daria grandes bombadas, sentindo minhas bolas baterem na entrada do cu dessas vadias gostosas. Eu não conseguiria comer cada uma delas mais de uma vez. Gisella Andrade não era dessas, era de um outro tipo bem comum daquele tempo. Gisella Andrade era retrô, usava vestidinhos de bolinha, adorava se vestir tipo pin up, era descolada, ouvia música alternativa, era vegana e tinha tendências lésbicas. Gisella Andrade, rezava a lenda, tinha o anelzinho de couro rosado. Eu sonhava com Gisella Andrade todos os dias. Eu a via sempre e a desejava secretamente. Achei que ela gostasse de mim. Eu desejava secretamente Gisella Andrade, estávamos cada vez mais próximos. Foi quando descobri que Gisella Andrade se prostituía para amigos mais próximos. Fazia tudo em casa. No fim da noite sempre pedia carona para alguém. Era sempre esse o escolhido. Sim, ela sempre escolhia. Pra pagar os livros que adorava comprar. Não, o mundo não era mais para os sonhadores. Eu era um sonhador, um romântico besta e anacrônico. Eu sonhava em ter Gisella Andrade comigo. Ela me prometendo tantas coisas enquanto eu botava o dedo sobre os lábios inferiores tão bem definidos de Gisella Andrade. Gisella Andrade lendo Drummond e a gente se jogando da cama no chão. Não, o mundo não era mais tão brega assim e eu sentia falta disso. Gisella Andrade deu pra todos, mas não deu justamente pra mim. Fui preservado, me disseram uma vez. Preservado de quê? Gisella Andrade por ventura tinha alguma doença contagiosa sífilis, AIDS, gonorréia, bucetinha fedida? Nada disso, pelo menos é o que me contam. Eu vi Gisella Andrade seminua uma vez. Havia uma festa em casa e eu usei o truque velho e barato de derrubar bebida no vestido dela. Ela estava com os faróis acesos. Ofereci meu quarto para ela se trocar. Ela me pegou pela mão e me levou até o quarto com ela. Ficou nua, não precisava tirar a calcinha e o sutiã, mas ficou nua. Quis que eu a visse. Olhou pra mim e sorriu. Aí vestiu o vestido sujo novamente, pegou a taça de vinho e saiu porta afora. Nunca avancei mais do que isso no assunto Gisella Andrade. Ela virou atriz do municipal e depois se casou com um cara que fazia comércio exterior e ia morar na Alemanha. Ouvi dizer que ela apanhava todos os dias. Ela me mandou algumas fotos por email, no facebook ela não postava nada. Morreu faz alguns anos. Eu já estava de pau duro pensando em Gisella Andrade. Nesse momento a guria acordou. Eu não percebi, enquanto eu lembrava de Gisella Andrade eu me masturbava. Ela começou a me chupar, a guria da noite. Eu havia me esquecido completamente dela. Eu havia mesmo esquecido que eu estava ali, naquele descampado, que eu tinha transado com a primeira louca que aparecera. Eu chorei. Chorei porque havia muito tempo que Gisella Andrade tinha se suicidado com uma corda no fundo de casa. Acharam o corpo dela na neve. Eu chorei porque as primeiras réstias de luz foram aparecendo e as pessoas começaram a levantar para irem trabalhar. Era começo de semana. Estavam descansados e iam todos ganhar o pão suado. Gozei no céu da boca da morena maquiada. E enquanto jorrava, eu chorava sem entender nada. Só tinha certeza de uma coisa: eu ainda desejava secretamente Gisella Andrade. 

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