PLURIVERSOS

Revista Independente de Literatura

Da Verdade das Lendas




Da Verdade das Lendas
Marcos Peres

Não direi da Maringá real. Também não pretendo narrar a Maringá literária, platônica e idealizada. Quero, como um equilibrista, justificar-me na tênue linha que liga o real ao fantástico. Quero me perder nos limites geográficos que delimitam a República da Realidade e o Império dos Sonhos. Quero, em suma, acreditar que a realidade pode ser fantástica ou que o que a fantasia pode ser real, indistintamente.
Quero reproduzir a real (ou imaginária) história de Nelson Alexandre que conta as desventuras de uma moça e de seu afiado sexo que decepou – como os jacobinos – tantas cabeças em Maringá. A fraternidade, sim, é vermelha!
Quero dizer da seita existente (será?) que prefigura que os poderes do executivo, legislativo e judiciário foram propositalmente colocados em um triângulo equilátero, sendo que, em seu centro, há fincada apenas uma Catedral em formato de querida Sputnik.
Quero dizer do poeta maringaense noturno e errante que brada que foi além de Sócrates; que, enquanto o grego asseverou o memorial “Só sei que nada sei”, ele, além, afirma: “eu nem sei se nada sei!”. “Bravo, Viva!”, respondo-o. Não é todo dia que se encontra alguém que foi além de Sócrates.
Digo, principalmente, da fantástica vida e morte de João Boaventura que pode ser comprovada por quem tiver paciência e perspicácia ao revirar o Cemitério Municipal de Maringá.
João Lopes Boaventura veio de Penápolis em 67, como outros que encontraram em Maringá um incerto oásis no meio de tantas armas e repressões. Filiou-se a uma república de hippies literários, institucionalizada e fundada como República Casa de Epicuro. Conheço uma sobrevivente (que preservarei a autoria) desta casa, que assim afirma: “Nossa filosofia era hedonista e existencialista; não havia espaço para política e conjuntura internacional, em nossa libertina língua, era sinônimo de sexo com gringo”.
Tinham um pacto silencioso com o sistema: a República não se chocaria com os militares e, por sua vez, estes fariam vistas grossas à Casa. E, por um tempo, o objetivo foi alcançado: havia sim as drogas e a devassidão, mas como pretexto para a existência de uma casa feita de amor aos livros.
Boaventura tinha uma mente poderosa: respirava Sartre, almoçava Schopenhauer, arrotava Camus. Logo se destacou com um livro existencialista. Anos depois, escreveu um romance permeado de realismo mágico. Depois, silenciou-se. Disse que se preparava para seu terceiro livro – o livro que mudaria a sua vida. Estava certo. O argumento era singelo, mas poderoso: propôs-se a narrar um ato capaz de retirar a melancolia do mundo, tal como o emplastro de Brás Cubas. No entanto, para Boaventura, o mal não se resolveria com um remédio, mas com um ato simples, realizado por qualquer pessoa. Apesar de estar rodeado do caos, o mundo mental de Boaventura era organizado. Tinha em sua mente arranjado todos os capítulos e a psicologia do seu romance. E a ideia não se transformou em história porque, logo no princípio, João foi atropelado. No acidente, bateu forte com a cabeça no chão e ficou meses internado em estado grave.
O médico concluiu que o forte acidente afetou seu cérebro. Uma curta entrevista confirmou: João perdeu os últimos 12 anos de memória. Desse tempo, não se lembrava de nada: dos seus livros, dos seus tantos amores, da vida insensata que viveu.
As consequências são previstas: João não se recordava dos últimos anos. Logo, não se recordava do seu inacabado livro. Assim os membros da República concluíram idealmente que João retrocedera 12 anos e, portanto, para concluir o livro, devia vive-los novamente: os mesmos amores, as mesmas influências, os mesmo diálogos. Apenas reproduzindo de maneira integral a concatenação de atos, influências e pensamentos é que se chegaria ao exato instante em que floresceu a ideia do livro.
A república foi arrumada e a farsa instalada. Os atores por vezes eram flagrados em má atuação: o acidente tirara a memória, não o discernimento de João. Já estavam todos cansados de uma vida repleta de álcool e libertinagem em nome da literatura e logo o teatro foi fatalmente desvendado. Boaventura descobriu tudo. Após, piorou a olhos vistos. Começou a enxergar todos como inimigos, como expectadores de um livro que estava 12 anos à frente de seu entendimento. Febres o abrasavam enquanto devaneava que o autor do livro inacabado era o mesmo que agora tentava tirar sua vida. Em um ano, um câncer o matou e foi sepultado no cemitério municipal com uma inscrição de um filósofo grego.

Aos duvidosos da história narrada, rogo que façam uma visita ao cemitério municipal. Se for ficção, não existirá nenhum Boaventura. Se realidade, haverá a inscrição de Boaventura entre os tantos que ali residem... Ou pode ser que a digitalização do cadastro dos hóspedes do cemitério tenha olvidado os mais antigos... Mas, mesmo assim, a lápide continua lá: pequena, modesta e com a frase “o tempo é o mais sábio dos conselheiros” de Plutarco. Ficção? Realidade? Não sei... Aliás: nem sei se nada sei.  

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