Ofício absurdo
Rômulo Brunieri
Embaraço,
tensão. Mínimas possibilidades provém de uma cabeça tão chapada e
desconcertante. A todo o momento me vejo caído, sonolento, presa fácil pra
qualquer insanidade. Escondo-me, olho torto, como se os velhos quisessem roubar
minha juventude. Como se cada flor que brotasse no chão fingisse ser uma
esperança. Eu a apanharia e a acolheria, mas não duvidaria da possibilidade de
ser apenas uma flor no inverno. Meus olhos cansados, meus pés doloridos e meus
céus com dez luas. Vastidão ingênua, asfalto esburacado que não acaba, o chão
amolece e absorve meu caminhar, a brisa quente me cansa, as folhas secas me
cegam, e tudo, eu disse tudo, não parece ser eterno. Poucas palavras na língua,
milhões de palavras fervilhando na cabeça, pulsando, dilacerando as beiradas da
pele e de qualquer consciência que possa florescer. Mergulho em um balde de
vômito, depois me lavo com água morna, adormeço e acordo trêmulo com pleno medo
do futuro. Rabisco, teclo, exijo, conserto, me prendo, verbos, conectivos,
bocas, nervos, tinta e coração. Bebo litros de café, acendo aos poucos mais de
trinta cigarros, me perco ao menos dez mil vezes e escrevo mais de mil palavras
solitárias.
Conflito,
ansiedade. Grande possibilidade de terminar morto dentro da garrafa, ou ser
queimado completamente pelo cigarro. Medo dos vidros, das normalidades, das
banalidades, da capitalização dos meus favores e dos meus gostos. Anseio, pelo
corpo macio e esbranquiçado do quarto escuro, pelo gosto de cerveja daquela
boca, pelo cheiro da tonteira. Os versos se deitam nus então eu os visto, ou os
deixo logicamente vestidos, ou seja, completamente nus. Posso libertá-los das
camisas de força, posso aprisioná-los e perdê-los atrás dos olhos, posso
lacrimejar e dar vida a cada um deles, ou posso gritá-los na ardência imediata
da folha. Eu os deixo ali, publicados, escondidos, mas eles sabem, nos fundo
eles sabem, que eu penso em cada deles. Querem sair, aproveitar, mal sabem eles
que são eternos. Há quantos nós? Ruas inteiras. Sinto-me como uma máquina
movida a cafeína, desenvolvida pelo homem, temente a Deus, vestindo um casaco
militar estampado o símbolo do desarmamento, sem vestir capacete, com o cabelo
caído sobre as sobrancelhas suadas, com os dedos doloridos, e as engrenagens
girando insaciáveis. Quem me dera não amolecer como o metal. Tolice, eu
enferrujaria a qualquer chuva, não quero deixar de dançar na garoa.
Minhas folhas
estão lá, carentes, deliciosamente questionáveis, putas que se oferecem e no
fim acabam cobrando ainda mais caro do que pensei. Eu transo com cada uma
delas, então bebemos, conversamos, eu enxugo meu suor, então eu beijo a boca de
cada uma delas. Beijo doce ou amargo depende das exigências que fiz, na maioria
delas, tenho colhido carinhos amargos. Sujo demais, talvez, realista demais, quem
sabe, nunca fiz uma análise crítica do que escrevo, simplesmente escrevo, é o
que quero, do contrário, seria uma obrigação e não amor. Já disse às estrelas o
que sinto, já escrevi poemas à noite, a Deus, já bebi doses amargas de silêncio
em nome da loucura. Chorei como um recém-nascido que acaba de ver a primeira
luz amarelada do quarto do hospital, quando vi crianças descalças aprendendo da
pior maneira àquilo que estamos sujeitos. Sim eu chorei, como chorei. As noites
em que adormeci contente foram as noites em que adormeci eufórico, ansioso pelo
amanhã, demorei a adormecer. Contei tudo às folhas, cada detalhe que me
consumiu neurônios, cada sílaba e gota sólida do meu corpo que desliza da ponta
até o fim, assim, quente, deixando trilhas de memórias. Meus maiores e mais
excitantes anseios estão ali, rabiscados. Um dia fresco de outono, numa casa de
madeira na beira de um lago, com uma varanda extensa bem esculpida, molhada
pelo orvalho, sacada pelos raios finos e castanhos, incríveis castanhos, raios
de sol. Árvores imensas em torno da casa, folhas verdes que parecem vivas,
folhas marrons que flutuam por cima da chaminé de tijolos vermelhos, folhas
secas que adormecem e esfarelam no gramado que beira a casa. Cheiro doce da
natureza. A porta de frente está aberta, um tapete escuro, velho, posto na
porta para pisarmos com nossos pés descalços. Caminharemos na grama, nos
deitaremos na beira do lago, de olhos voltados ao céu vamos contar histórias e
comentar sobre o formato das nuvens e a profundidade misteriosa do universo. O
lago estará pulsante, inquieto. Nos Beijaremos várias vezes, eu pousarei sua
cabeça no meu ombro, te acariciarei por horas, sorrirei em todas elas.
Escreverei poemas sobre tua face e te amarei em cada um dos segundos. Depois,
quando a tarde estiver fria, eu a levarei para a velha casa e a deitarei ao
lado da lareira sobre um tapete macio, sobre almofadas, e então a beijarei por
mais alguns minutos, e quando eu sentir o calor do teu corpo, irei tirar suas
roupas aos poucos, delicadamente para que eu a veja delirar, beijarei seus
seios e colocarei minhas mãos em sua nuca, ouvirei teus gemidos, sentirei teu
sorriso, beijarei seus lábios mais uma vez, eu a deixarei nua, e deixarei que
você venha me despir, tocarei cada parte do seu corpo, sentirei seu arrepio e
teu suor. Apenas nós estaremos lá, ao lado do fogo, além do instante, distante
de todo o mundo, somente nós. Vivos, acesos, como incandescentes lâmpadas
incansáveis, dançantes, personagens de um sonho.
Gotas
distraídas amolecem o tempo, me envelhecem a tempo, me aborrecem, me inspiram,
eu escrevo, as escrevo, e envelheço. Sou uma obra confusa, explosiva, um
escritor, vivo de palavras.
Rômulo Brunieri


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