Entre pastéis
Gustavo Hermsdorff
Sexta é dia de
feira, desculpa para comer um pastel na praça da igreja enquanto não começo o
dia. E como todas as sextas, apanhei meu jornal na banca e falei com o Marcão
pra liberar um de frango e um de carne para acompanhar o café preto que peguei
na padaria. Antes de sentar vasculhei a carteira, alguns trocados já pagavam e
deixava uma sobra para a mocinha do caixa.
Longe o bastante
para não ser tocado, mas perto o suficiente para sentir o cheiro da fritura,
ele olhava a barraca e o entra e sai de gente e pastel. O pretinho rondava. Seu
olhar não era de medo, mas de uma coragem doída, sangrada, de pedra, de pó, de
pé no chão. Sujo, magro e descuidado, encarava de baixo, como a criatura encara
o criador.
À espreita, se
movia respeitando uma espécie de demarcação entre os humanos e a sujeira.
Parecia saber que não pertence àquele mundo. Mostrou raiva quando viu alguns
dos seus se aproximando. Outros como ele, com a mesma coragem doída, sujos,
magros, descuidados e olhando de baixo como criatura. Quis espantá-los, mas não
o fez. Tinha coragem, mas sabia que a rua não tinha dono.
Um bando de
pretinhos sem dentificação. Espertaram-se quando uma senhora acertou a conta,
na outra mão ela carregava um resto de pastel. Levou-o até chegar perto deles e
arremessou longe, para livrá-los de seu caminho. Era a chance. Correram,
brigaram e se amontoaram pelas migalhas. Os mais espertos fugiram com seus
pedaços. Ele voltou.
Olhei-o por mais
alguns minutos. Tinha certeza que um pastel não seria capaz de matar a fome que
parecia sofrer. Ou não sofria mais. Aquela altura a fome deveria ser um estado
de espírito que condiciona seus dias: matá-la é o mínimo para viver mais um
dia. Tomara que até o fim da feira o Marcão jogue algum pastel queimado para
ele.
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