PLURIVERSOS

Revista Independente de Literatura

HELDER MACEDO


Um dos textos técnicos mais interessantes dessa segunda edição da Revista Pluriversos é de autoria de Marisa Corrêa Silva que nos apresenta a obra do português Helder Macedo. O escritor que é professor de literatura na Inglaterra há anos, ainda é pouco lido e estudado no Brasil. Marisa é uma das maiores estudiosas da obra do lusitano em terras brasileiras. O texto que aqui publicamos também está na versão em pdf do número 2 da revista Pluriversos, na seção Um Olhar Sobre as Palavras. Baixe a revista, leia, comente, critique, divulgue, sugira!



Alguns escritores são do tipo que lemos de uma vez só, lamentando se tivermos que abandonar o livro para trabalhar, dormir, comer ou qualquer atividade “profana”. Uma vez terminada a trama, a gente esquece o livro, ou pensa nele como uma charada bem feita, cuja resposta nos surpreendeu. O Código da Vinci e a maioria das novelas policiais de Agatha Christie são desse tipo.
Outros são como cantigas de ninar: já conhecemos a história, ela de alguma forma nos reconforta, relemos a obra por vezes sem conta, felizes de rever nela velhos amigos e gestos nos quais reconhecemos e/ou projetamos a nossa própria imaginação. Como exemplo desse tipo de livro, proponho A Caverna, de Saramago ou As Mil e Uma Noites.
Outros são como aqueles amigos quietos que nos surpreendem positivamente nas horas difíceis: de leitura árdua, páginas que nos fazem voltar para reler, exigindo intervalos para tomar um café ou fazer outra coisa, o término da leitura não nos dá respostas e sim cria novas perguntas. A esses livros a gente retorna e, a cada vez, parece que está lendo uma obra nova. O exemplo clássico desse tipo de romance é o inquietante Dom Casmurro, de Machado. Mas quem gosta desse tipo de leitura ficará muito alegre ao folhear os romances do português Helder Macedo.
O autor de Partes de África (1991), Pedro e Paula(1998), Vicios e Virtudes (2000), Sem Nome (2005), Natália (2009) e, finalmente, Tão Longo Amor, Tão Curta a Vida (2013) criou uma obra que desafia o leitor médio. Irônico, irreverente, sem papas na língua e sem medo de ser considerado politicamente incorreto (embora seja um humanista), Macedo constrói em sua obra narrativa um vasto panorama de um Portugal dos anos 90 em diante. Entre a entrada na Comunidade Europeia e a crise atual; entre os ecos do final da ditadura salazarista e da independência das últimas colônias africanas e uma perspectiva de futuro cada vez mais caótica, o país tenta encontrar uma cara e rumos viáveis no século XXI.
Mas esses romances não teriam tanto interesse para o leitor brasileiro se fossem apenas essa crônica refinada de Portugal. A obra de Macedo é bem mais do que isso. Escrita por um autor que, embora jamais tenha abandonado a identidade portuguesa, que ensina literatura de língua portuguesa na Universidade e que escreve e publica em português, vive em Londres há muitos anos e tem a vivência de outras culturas. Tal vivência não descaracteriza sua consciência do que é Portugal: antes, funciona como parâmetro, como termo de comparação, dando uma profundidade ao seu olhar, que jamais é provinciano. A partir dessa profundidade, Portugal torna-se metáfora de tudo o que ainda não encontrou suas certezas – de tudo o que interroga onde é o seu lugar no mundo.
Essa pergunta não é muito compatível com mentalidades formadas nos chamados “países centrais”. Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França etc. padecem do que vou chamar “certezas culturais”: uma longa tradição de se sentirem justificados pelo próprio sucesso. Nessas culturas, a voz que se ergue para colocar em dúvida o local que ocupam no sistema mundial é uma voz de contracultura, underground. Entre portugueses e brasileiros (para não falar de argentinos, eslovenos, poloneses etc.), essa voz é maioria, pois não possui certezas prévias que lhe dizem ser o seu modo de vida o melhor possível, baseadas principalmente numa economia forte e numa qualidade de vida atraente para a maioria da sua população.
Macedo cria sua prosa de forma a contar histórias que não podem ser resumidas sem serem falsificadas. A estratégia que ele desenvolveu para obrigar o leitor a pensar é muito interessante e tem a ver com a figura do narrador. Ao longo dos seis romances, Macedo vai experimentando e desenvolvendo formas de fazer que o narrador, mesmo que tome partido e emita julgamentos, recuse julgar as outras personagens, mas tente entende-las, sem se sentir seguro sobre o que pode ter percebido da psicologia e/ou das motivações delas.
Nos três primeiros romances, o narrador é tão peculiar que foi batizado de “autor”-narrador: ele se chama Helder Macedo, é português, mora em Londres, é bem casado com S., ensina no King’s College... ou seja: é muito parecido com o autor do texto. Tão parecido que é fácil levar o leitor a confundir os dois. Mas esse “autor”-narrador nunca é tão esperto quando o autor de verdade: este sim, mantém as chaves da história narrada, história essa que o narrador tenta contar mas sempre se mostra inadequado.
Por exemplo, em Partes de África, romance de estreia, publicado em 1991, o “autor”-narrador declara que vai escrever um livro baseado em partes da própria vida, mas que vai inventar muita coisa, misturar outras coisas e em geral não fazer a menor distinção entre verdade e invenção. No meio do livro, ele coloca um pedaço de outra obra, uma paródia de Don Juan passada em Portugal durante a ditadura salazarista, e lembra carinhosamente do amigo Luis Garcia de Medeiros, que é o autor dessa paródia. Acontece que Medeiros nunca existiu: é um poeta inventado pelo autor textual e seus amigos artistas do grupo do Café Gelo, de meados dos anos 1950. Assim, o autor do romance faz o “autor”-narrador aparentemente interromper a própria história para homenagear o amigo desaparecido, criando uma quebra estrondosa dentro do livro. Só que essa “quebra” não é verdadeira, e sim um mecanismo que o autor de verdade colocou para falar da ditadura e dar um exemplo do tipo de obra literária que respondia àqueles tempos difíceis.
No quarto romance, o narrador é heterodiegético (antigamente chamado “de terceira pessoa”, ou seja: não é personagem, é apenas uma voz “desencarnada” que conta a história). Mas Sem Nome conta como uma mentira irresponsável e gratuita foi diretamente responsável por resgatar o sentido da vida de um homem maduro e amargurado, ao mesmo tempo em que fez uma moça fútil e alienada repensar a própria vida e tomar uma atitude ética e corajosa. Ou seja, rompe os padrões que o leitor aprendeu a considerar como “certo” e “errado” e obriga a pensar não somente as relações entre verdade e mentira, mas também entre fato histórico e ficção.
O quinto romance tem uma narradora (portanto, não pode ser confundida com o autor) e é o diário dessa mulher que lemos, como voyeurs. Ela publica partes do diário e a leitura vai criando um expectativa crescente no leitor. Natália parece que se encaminha sempre para um modo de vida mais escandaloso para o burguês, desafiando mais e mais a moral e as convenções. Numa reviravolta, ela acaba a história tendo a atitude mais “careta” possível, sem que essa atitude traga felicidade, realização pessoal ou sentido. Ela apenas repete: “tem de ser assim”. E o leitor fica com a pergunta: por que tem de ser assim? A psicologia da personagem não é explicada de maneira a tranquilizar quem lê.
No sexto romance, lançado em Setembro de 2013 no Brasil, retorna triunfalmente o “autor”-narrador, para uma experiência ainda mais radical: convidado por uma personagem, ele tenta imaginar o que aconteceu na vida de outra pessoa. E, sabendo que essa história já não é mais uma investigação sobre o passado, mas uma invenção, ele duplica a outra pessoa e cria uma narrativa possível, mas inverossímil, sobre ela. A personagem que o convidou a contar a história lê o primeiro esboço e detesta o que leu: da conversa entre os dois, surgem indícios que apontam para um crime, mas a investigação nunca será concluída.
A inadequação do narrador também se dá, desde o terceiro romance, pelo fato de que o narrador, seja ele qual for, cede a voz em alguns momentos para que outra personagem conte a mesma história, criando versões que não são incompatíveis, mas que estragam a coesão da versão anterior. Esse ato de contar a história em camadas, cada uma atrapalhando a outra, em vez de completar o que já foi dito, é responsável pela sensação de que, no final da leitura, é preciso ler novamente; que alguma pista escapou ao leitor. Ao contrário do romance-enigma que é solucionado no fim da leitura, de que falei no primeiro parágrafo deste texto, o romance de Helder Macedo se revela como enigma no final de leitura, deixando ao leitor não a resposta pronta e tranquilizadora, mas uma nova série de perguntas, que faz com que a história contada não se feche jamais.



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