PLURIVERSOS

Revista Independente de Literatura

O CIGARRO SEM FILTRO E A SOCIEDADE FILTRADA

Por Luigi Ricciardi
Artigo publicado originalmente no jornal O Diário de Maringá

Um romance que dá voz aos pequenos. Jaso, Maria, Ruço, Lozinho. Gente simples, trabalhadores do interior, da fictícia Boca. O tempo é do risco, do cigarro sem filtro, da ditadura que mostra suas garras mesmo em um lugar ermo. Gente oprimida, com seus demônios interiores, suas vidas levadas ao acaso, ao vento que bate, pois melhor opção não há. Gente que sofre e que mata, que ajuda, se solidariza e se prostitui, que é massa de manobra e não sabe.
Tempos de cigarro sem filtro, de José Maschio, é um livro sobre muitas coisas. Uma obra minimalista com potencial de maximização. Uma história que se passa no interior do Brasil, mas poderia se passar em qualquer lugar do mundo, sobretudo na América Latina. O pano de fundo é um Brasil ditatorial, não tão distante, mas que parece estar esquecido por uma parcela da população atual.
Trata-se de um livro de revitalização da memória, um livro aviso talvez. Com certeza uma obra que ajuda a preencher uma das lacunas da literatura brasileira. Sempre achei que, se compararmos à chilena e à argentina, nossa literatura deu sempre pouca importância ao período ditatorial enquanto resgate memorialístico, embora tenha existido obras-chave durante o período militar.
Não há um personagem principal, embora haja vários com esse potencial. Jaso é um deles. Pedreiro de origem polonesa, aliado a políticos da Arena para conseguir trabalho. Mas há outros. Maria, esposa de Jaso, abandonada e prostituída antes de conhecer o marido. Lozinho, filho de ex-prostituta, exímio jogador de bilhar. Ruço, filho de comunista desaparecido e amigo de Lozinho. Os dois trabalhando para Jaso, chefe meio amigo e meio pai de meninos quase sem perspectiva.
Um romance que pinta vários quadros icônicos de um Brasil real. O dinheiro conquistado junto aos arenistas trazendo a água encanada tão sonhada, a luz elétrica utópica, uma vida menos miserável realizada. Polícia que estica os braços do sistema opressor. Pequenos que reproduzem esse sistema. Um anonimato daqueles que se propõem a lutar contra o regime. Uma oposição – composta de marxistas, trotskistas, anarquistas, entre outros – desorganizada, massacrada pelo poder vigente. Mortos em busca de liberdade.
Com uma linguagem que mistura o poético e o popular, José Maschio tece um romance belo, triste e realista. Se o cigarro sem filtro é mais danoso, provavelmente causa menos riscos à saúde do
que uma sociedade em cujo filtro só passa aquilo que convém. 

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