O TEMPO QUE RESTA
Carlos Henrique Schroeder
Colaborador
Eram botões difíceis de apertar.
Duros, poderia se dizer. Marcelinho fazia força e careta, e conseguia. Ainda
funcionava, mesmo depois de tudo. Na verdade os botões sempre foram duros,
mesmo antes da morte de Ricardo. A gavetinha estava rachada, e por trás do
plástico Marcelinho dizia que via algumas manchas de sangue, ainda.
– Caduquice, menino. Esse negócio tá
tinindo. E dê graças que tá funcionando, esse troço.
Funcionar é uma palavra ambígua
demais. A vida funciona? Não, sempre estraga.
Era
impossível abrir a gavetinha e, portanto, impossível de trocar o lado da fita.
Sempre o mesmo, o Lado A, sempre a mesma fita, o mesmo lado. Há vidas de um
lado só mesmo. Dó ré mi fá só.
Marcelinho sabia quantas músicas
havia no Lado A, pois conseguia vislumbrar, mesmo nas letras gastas, o
conteúdo: Há Tempos, Pais e Filhos, Feedback
Song for a Dying Friend, Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto e Eu
Era Um Lobisomem Juvenil. Mas somente a primeira música tocava bem, as demais
pareciam patinar algumas vezes, e acelerar em outras.
– Será esta a voz do diabo?, pensava
o garoto.
“Há tempos” era justamente a de que
Ricardo mais gostava.
– Aí, Mano, escuta só isso.
O garoto nunca esqueceu quando o
irmão colocou os fones em seu ouvido. Foi a primeira vez em que ele
compartilhou algo, um gesto que não fosse...
– Não enche!
– Sai fora!
– Cara, que moleque chato!
Marcelinho limpava todos os dias
o walkman. E não cansava de
olhá-lo. Sony. Botões de apertar. Legião urbana. Fita branca. As quatro
estações. AM/FM. Play. Stop. Pause.
FF. RW.
– Pra que limpar tanto isso aí,
menino!?
– Poeira, mãe, poeira.
Quando se mora a menos de cinquenta
metros da BR 101, percebe-se que a poeira dança, dia e noite. É uma neblina
seca que cobre os dias com uma tessitura opaca. As palavras tinham gosto de
terra. A voz é sempre cansada, um pigarro ininterrupto.
Marcelinho e sua mãe moravam numa
pequena casa de tábuas coloridas, com dois cômodos, um banheiro e uma cozinha.
O garoto sabia que morava em algum lugar entre Curitiba e Balneário Camboriú,
pois todos diziam que um lado do asfalto, o A, mais próximo de sua casa, levava
para Curitiba, e o B para Balneário Camboriú. O A destruiu sua família.
– Foi o asfalto que matou teu pai.
Foi o asfalto. E teu irmão também.
Para o garoto de nove anos de
cabelos cacheados, o asfalto era o irmão do diabo. Todos temiam o asfalto, até
o vô Neco, que a mãe dizia que era “sabedor das coisas”.
– Marcelinho, nunca brinque perto do
asfalto, ele não perdoa. Você viu o que aconteceu com seu pai e com seu irmão.
Quando o pai morreu, o garoto soube
o que era um sentimento misto: alegria e tristeza.
Foram-se o bafo de cachaça, as surras de caniço, o choro do
irmão, o som seco das mãos do pai no rosto lívido da mãe, os gritos. Foi-se o
pai.
Dizem que o pai de Marcelinho estava
tão bêbado que queria encostar nos carros, no meio da pista.
– Vem cá, fia-da-mãe! Te pego, olho
de fogo!
A morte do pai trouxe o silêncio. A
do irmão, o vazio.
Ricardo morreu porque “confiou nas
pernas”, segundo o vô Neco. Quando a mãe e Marcelinho escutaram o estrondo,
sabiam que não teriam pão para o jantar. Ele morreu escutando a primeira música
da fita, segurando o walkman. Marcelinho achava que ele havia apertado o Stop
antes de morrer, e que isso era uma mensagem para ele, um sinal. Decorou a
letra e passou a imitar a entonação de Renato Russo.
– Tá caduco, menino! Parece teu irmão, que Deus o tenha...
Ele gostava da comparação, e cantava ainda mais alto, com
sua voz esganiçada. E escutava, escutava e cantava (embora não compreendesse de
todo a letra).
Parece cocaína
Mas é só tristeza
Talvez tua cidade
Muitos temores nascem
Do cansaço e da solidão
Descompasso, desperdício
Herdeiros são agora
Da virtude que perdemos...
Palavras como tristeza, cansaço e solidão causam grande
impressão em qualquer garoto, ainda mais quando se mergulha nessa tríade
diariamente. Marcelinho batia ponto num pequeno amontoado de terra, perto do
poço. Ele e seus dois carrinhos de plástico. E gostava de conversar com o
pequeno morrinho, um pouco menor que ele, atribuindo a ele certa forma humana,
em sua imaginação, claro. Dizem que sonhar com formigas é um sintoma da
solidão. Marcelinho sempre sonhava com formigas. Elas o mordiam nos sonhos.
Quando apareciam formigas em seu morrinho, ele voltava para o quarto, para o
walkman.
Há tempos tive um sonho
Não me lembro, não me lembro...
Tua tristeza é tão exata
E hoje o dia é tão bonito
Já estamos acostumados
A não termos mais nem isso...
Os sonhos vêm, os sonhos vão
O resto é imperfeito...
Vô Neco dizia que não sonhava mais, que o asfalto roubara
seus sonhos.
– Há algum tempo, antes da duplicação, acordar era um
milagre. Todos os meses o asfalto levava um, dizia o vô Neco para Marcelinho.
Neco perdeu a mulher e três filhos
para o asfalto. Sabia mais do que ninguém a força do bicho-lata, e do
bicho-asfalto.
– Nunca brinque muito perto dele, pois o asfalto é tinhoso,
está só esperando para engolir você, fique sempre próximo ao poço. Mais seguro.
Marcelinho gostava do poço, com sua água sempre fresca e
limpa. Quando estava cheio, quase transbordando, passava horas admirando sua
própria imagem, sempre ao som do walkman. O menino sempre fora uma pintura
viva, talvez de Bonnard: os olhos tristes escondiam movimentos leves. Depois da
morte da mãe o garoto foi viver com vô Neco, do outro lado, o lado B, a dois
quilômetros de onde vivia. Deixou de falar e passava horas e horas observando o
movimento dos carros, e não havia um dia em que não se lembrasse de quando o
barulho da buzina e da freada do caminhão eclipsaram o último volume do
walkman. Do poço pôde ver as madeiras de sua casa, voando.
Disseste que se tua voz
Tivesse força igual
À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira...
Vô Neco chorava todos os dias, pela mudez do garoto, por
tudo, e imaginava o tempo que resta nos olhos do garoto.
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