PLURIVERSOS

Revista Independente de Literatura





VOLKSWAGEN BLUES E FÉ NA ESTRADA: ECOS BEATS

A FORÇA DE ON THE ROAD NA LITERATURA DAS DÉCADAS SEGUINTES



A VIDA NÃO É SIMPLES, POR ISSO, É TÃO BOA.
Na minha casa, no Rio de Janeiro, na cabeceira da minha cama, ao lado de antiácidos importados que nunca fazem efeito, há uma foto da Gabriela em nova York, tirada em setembro de 2011, quando ela participou do movimento Occupy, em Wall Street. Ela está sentada no chão do Zuccotti Park com outros manifestantes e veste uma camiseta branca com a foto de Jack Kerouac estampada no peito. Olho para a foto, penso no quanto eu desprezo os Estados Unidos da América, no quanto invejo os Estados Unidos da América e lembro como tudo começou. FÉ NA ESTRADA

            Eu já havia publicado aqui anteriormente um artigo falando a respeito da perpetuação de On the Road de Jack Kerouac na cultura ocidental. A bíblia beat talvez tenha sido a cristalização de uma das coisas que o ser humano mais fez ao longo da sua trajetória na terra: o deslocamento. Evidentemente que, na maioria das vezes, não falamos de uma viagem turística. Muita gente precisou se deslocar por conta de guerras, fome, seca e outras questões ad infinitum. A literatura está riquíssima de exemplos, passando por Homero, Swift, Garrett, Camões, Marco Pólo, Júlio Verne, entre outros. Seja por mar, terra ou ar, as viagens foram sempre aventuras para o ser humano, qualquer que seja o motivo que nos leva a encará-las.
            Mas parece que há certo fetiche moderno pela estrada. Por isso a cristalização da obra beat na segunda metade do século XX e também agora no século XXI. Kerouac talvez seja um dos escritores mais imitados post-mortem. Eu mesmo refiz um de seus trechos, o que me rendeu um conto a respeito: Afinal, que Estrada?

Il y avait des livres dans tous les recoins du Volkswagen. À ceux que l’homme avait mis dans ses bagages en partant de Québec s’étaient ajoutés les livres qu’il avait achetés ou que la fille avait « empruntés » en cours de route. Il y en avait dans le compartiment aménagé derrière le siège du conducteur ; dans le coffre à gants où dormait le chat ; derrière et sous le siège du passager ; sur la deuxième tablette de l’armoire à pharmacie ; dans le compartiment des casseroles et autres ustensiles de cuisine ; au fond du petit placard où les vêtements de pluie étaient suspendus et sur la tablette surplombant la banquette arrière. Quel que fût l’endroit où l’on se trouvait dans le minibus, on avait toujours un livre à portée de la main VOLKSWAGEN BLUES
Havia livros em todos os recantos do Volkswagen. Àqueles que o homem tinha colocado nas suas bagagens partindo do Quebec, tinham se juntados os livros que ele havia comprado ou que a garota tinha “emprestado” ao longo da estrada. Havia livros no compartimento atrás do banco do motorista, no porta luvas onde o gato dormia, atrás e debaixo do banco do passageiro; sobre o armarinho de primeiros socorros; no armário das panelas e outros utensílios de cozinha; no fundo do pequeno armário onde as roupas de chuva estavam suspensas e na mesinha que estava acima da banquetinha de trás. Qualquer que fosse o lugar que se estivesse no microônibus, havia sempre um livro ao alcance da mão. TRADUÇÃO MINHA


            Hoje ressalto aqui dois dos tantos livros inspirados em On the Road, dois livros que, a meu ver, apesar da ligação direta com a obra de Kerouac, consegue andar com as próprias pernas e não se tornar apenas um cópia descarada. O primeiro livro, com o qual tive a felicidade de trabalhar no meu mestrado é Volkswagen Blues do escritor canadense Jacques Poulin. As referências a Kerouac são claras. O personagem principal, apesar de morar no Quebec (onde se fala francês) tem o nome anglófono de Jack. Atravessa os Estados Unidos e finalmente chega a São Francisco, terra idolatrada pelos beats. Théo, irmão de Jack é preso com um exemplar de On the Road nas mãos. Mas as semelhanças param por aí.
Jack, um escritor de pequena vendagem vive na Cidade do Quebec. Ele não tem notícias do seu irmão Théo há praticamente vinte anos. Jack só possui um cartão postal que o irmão mandou há muitos anos e que está carimbado com o selo da cidade de Gaspé, local onde o primeiro europeu (Jacques Cartier) pisou em terras canadenses. Ele decide ir até a cidade para encontrar algum traço que o leve ao seu irmão. Lá, após dar uma carona a uma jovem mestiça chamada Pitsémine, apelidada de “La Grande Sauterelle” – “O Grande Gafanhoto” por conta de suas pernas finas e compridas –, ele descobre, no caderno de visitas do museu histórico da cidade, o endereço de seu irmão: Saint Louis, Estados Unidos.

Il agita la main jusqu’à ce que le Volks eût disparu, et lorsqu’il entra tout seul dans l’aérogare, il souriait malgré tout à la pensée qu’il y avait, quelque part dans l’immensité de l’Amérique, un lieu secret où les dieux des Indiens et les autres dieux étaient rassemblés et tenaient conseil dans le but de veiller sur lui et d’éclairer sa route. VOLKSWAGEN BLUES
Ele agitou a mão até que o Volks desaparecesse, e quando ele entrou sozinho no hall do aeroporto, ele sorria, apesar de tudo, pensando que havia, em algum lugar na imensidão da América, um lugar secreto onde os deuses dos índios e os outros deuses estavam juntos em um conselho, com o objetivo de velar sobre ele e de iluminar seu caminho. TRADUÇÃO MINHA

            A jovem decide acompanhá-lo na busca pelo irmão e eles percorrem várias cidades e locais de acontecimentos históricos nos Estados Unidos – Detroit, Saint Louis, Chicago, a Trilha de Oregon, o rio Mississipi – transformando o romance em uma narrativa de viagem. A narrativa chega ao fim em São Francisco, na Califórnia, onde as personagens conhecem o escritor Lawrence Ferlinghetti em uma livraria, e descobre que Théo participara de encontros entre intelectuais anos antes. Mas ele continua desaparecido, mesmo uma ex-namorada que trabalha como stripper na cidade não o vê há muito tempo. E após ter percorrido mais de seis mil quilômetros com a ajuda de vagas informações, Jack fica próximo de encontrar o irmão, mas paremos por aqui para não contarmos o final do livro.
O romance é composto de trinta e três capítulos, sendo o décimo sétimo, exatamente o capítulo que está no centro do romance também é o capítulo intitulado Le Milieu de l’Amérique onde as personagens estão em Kansas, no centro dos Estados Unidos e da América do Norte. Seu título, Volkswagen Blues, remete, evidentemente, à marca alemã de automóveis, mas o Blues, gênero musical que tem suas origens ligadas aos negros americanos que cantavam durante o trabalho nas colheitas com um tom melancólico e nostálgico ao se lembrarem da antiga terra, é que dá o tom da narrativa. A viagem é harmônica e constante, lembrando os compassos do gênero musical, e durante todo o romance pode-se sentir um clima de certa nostalgia e melancolia.

O rio San Juan seria o último banho, o último contato com água em quantidade em muito tempo. As instruções do policial navajo eram claras. Em Window Rock, pegar de volta a Navajo Route 13 North até o acampamento Niyol. A rota 12 era, na verdade, uma estrada no meio do nada, onde não se enxergava cinco metros a frente por causa de uma neblina cor-de-rosa tão espessa quanto salmão defumado. Por isso havia um limite de velocidade: 55 quilômetros por hora. O tubarão estava puto. FÉ NA ESTRADA

Nesse livro o tom é completamente diferente de On the Road. Apesar do sentimento de aventura que perpassa as personagens durante a narrativa, o tom aqui é triste, como já dito, pois há a morte daquele humanismo presente na obra de Kerouac. É a vitória completa do capitalismo sobre o humanismo. O livro é belíssimo, uma pena não existir tradução para o português. Quem não se agüentar de vontade precisa se aventurar no original francês ou na tradução para o inglês.
           On the Road inspirou também o brasileiro Dodô Azevedo a refazer todas as rotas das personagens e a escrever seu próprio livro contanto os fatos vividos. A referência aqui é muito mais clara do que em Volkswagen Blues. Fé na Estrada, título inspirado no próprio subtítulo de On the Road em português – Pé na Estrada. O protagonista do livro, que também se chama Dodô, vai aos Estados Unidos para ver o que ainda resta de beatnik na cultura estadunidense pós 11 de setembro e em pleno governo W. Bush. Mas as rotas são diferentes e as situações estão muito mais próximas ao cômico e ao humor do que as obras que o antecederam. Mas é claramente um filho beat.

Era 2003 e eu finalmente estava nos Estados Unidos. Já no meio da viagem. Eu odiava os Estados Unidos. Eu odiava viajar, acampar, lidar com mosquitos, comida enlatada, cheiro de mato. Conhecer gente nova que depois você nunca mais vai ver na vida é para os outros, não pra mim. Não faço ideia de como se monta uma barraca. Meu senso de direção é constrangedor, sou capaz de me perder no meu apartamento. Se me perco, não me encontro mais. FÉ NA ESTRADA.

On the Road, romance mais famoso da geração beat e fonte de inspiração de inúmeros outros livros e inúmeros filmes como Na Natureza Selvagem, Easy Rider, Interstate 60, Quase Famosos e Transamérica, entre outros é a obra referência e icônica do romance de estrada. E seus ecos ainda perduram.

Qu’il est long le chemin de l’Amérique
Qu’il est long le chemin de l’amour
Le bonheur, ça vient toujours après la peine
T’en fais pas, mon amie, je reviendrai
Puisque les voyages forment la jeunesse
T’es fais pas, mon amie, je viellirai.
VOLKSWAGEN BLUES
Como é longo o caminho da América
Como é longo o caminho do amor
A felicidade vem sempre após a dor
Não se preocupe, minha amiga, eu voltarei
Pois as viagens fazem a juventude
Não se preocupe, minha amiga, eu envelhecerei 
TRADUÇÃO MINHA


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